Compreensão para além da língua
Representantes de diferentes povos reunidos no intercâmbio coletivo da RCA presenciaram a cultura viva dos povos Timbira na aldeia Escalvado, do povo Canela Ramkokamekra
por Nathália Clark
Durante o intercâmbio coletivo realizado pela Rede de Cooperação Alternativa (RCA) entre os dias 19 e 26 de agosto no Centro de Ensino e Pesquisa Pëmxwyj Hëmpejxà e na aldeia Escalvado, no Maranhão, os participantes indígenas puderam perceber as muitas semelhanças, principalmente quanto às dificuldades e problemas, entre os povos que vivem em diferentes contextos e regiões do Brasil. O encontro reuniu cerca de 80 pessoas – indígenas e não indígenas – de distintas etnias, línguas e territórios. Ao longo da viagem, ficou nítida a grande distância entre o Cerrado, a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica, mas o registro mais forte foi, sem dúvida, o entendimento e a afinidade entre culturas diversas, mas que possuem uma luta comum: o direito às terras, à autonomia e à manutenção de suas tradições.
Foram convidados representantes de 30 organizações indígenas, sendo dez componentes da RCA, seis do Vale do Javari, uma do povo Guarani, três do Amapá e mais outras dez dos povos Timbira, incluindo a Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira do Maranhão e Tocantins, anfitriã do evento. As associações vieram representando ao todo 20 povos indígenas, sendo eles: Krikati, Gavião, Canela Apaniekra, Canela Ramkakomekra, Apinajé, Krahô, Kuikuro, Guarani, Matis, Kanamary, Marubo, Manchineri, Wayana, Wajãpi,Yanomami, Mayuruna, Yekuana, Tukano, Baré e Tiriyó.
Os grupos discutiram os desafios e rumos do movimento e da política indígena, à margem da política nacional. Houve trocas de experiências e reflexões sobre alternativas para os principais dilemas não ou pouco contemplados pelo governo, como saúde, educação, desenvolvimento sustentável das comunidades, manejo, proteção e gestão do território, demarcação de terras, e a valorização cultural e dos saberes tradicionais.
Um dos principais pontos debatidos foi a dificuldade de captação de recursos por parte das associações indígenas, quando esta é feita via projetos de governo. Segundo Jonas Gavião, um dos representantes dos povos Timbira, “o formato dos editais é muito burocratizado e não se adéqua à realidade política das comunidades”. Estas, por sua vez, têm de recorrer a organizações parceiras – indigenistas ou não – para conseguir a aprovação de suas propostas. Por esse motivo, foi ressaltada a importância da demanda por tratamento diferenciado.
A presença dos representantes do povo Guarani-Mbyá foi importante, pois eles levaram o exemplo de décadas de luta e articulação, mesmo sem contar com recursos ou projetos de apoio. Timóteo Guarani lembrou que os projetos são de fato importantes, mas ainda mais é a participação e articulação política interna das próprias populações indígenas, para cobrar políticas públicas dos governos municipais, estaduais e federal.
De acordo com Maurício, representante da Comissão de Terras Guarani Yvy Rupá, a grande dificuldade de seu povo é a demarcação das terras, que se encontram fragmentadas pelo processo de expropriação de seu território tradicional, que, no Brasil, abrange seis estados (ES, RJ, SP, PR, SC e RS). Segundo ele, algumas terras demarcadas podem chegar a apenas 1,7 hectare, para uma população que soma aproximadamente 55 mil só no Brasil.
“Há hoje 150 aldeias reconhecidas pela Funai, mas os velhos apontam mais 140 aldeias antigamente ocupadas e que agora viraram propriedades particulares ou áreas de preservação. Minha área, por exemplo, possui 7 hectares, onde vivem 300 pessoas. Por esse motivo, temos muitos parentes morando em beira de estrada”, relatou.
Também foram debatidas alternativas para que as associações tenham maior autonomia. Uma sugestão que teve apoio da maioria dos grupos foi a contribuição de pessoas das comunidades beneficiadas pela atuação do movimento indígena, e que possuam salário. A proposta prevê a criação de um fundo, que ajude financeiramente na estruturação de cada organização.
Sustentabilidade com a floresta em pé
Todas as organizações compartilham de três grandes temas: fortalecimento cultural, educação e saúde. Ao mesmo tempo, o que liga esses três assuntos é a questão maior da terra. Ou seja, preservar, conservar, vigiar e ocupar os territórios demarcados, além da luta por revisão dos limites e por demarcações ainda pendentes continuam sendo aspectos primordiais da política indígena.
A Terra Indígena Kanela, do povo Canela Ramkokamekra, que foi visitada na segunda parte do intercâmbio, está hoje em processo de revisão de limites, o que tem gerado grandes conflitos com proprietários próximos da região. São cerca de 180 mil hectares de área de Cerrado fortemente impactada pelo seu entorno, que abrigam mais de 2000 pessoas.
Diante da constatação de que hoje a grande maioria dos recursos de financiamento é voltada somente para a Amazônia, os representantes dos povos do Cerrado insistiram na necessidade de haver apoio a iniciativas também para outros biomas. Foi forte principalmente a cobrança por programas que atendam ao próprio Cerrado, que lá os recebeu. Arlete Krikati, presidente da Wyty-Catë, foi quem trouxe a discussão para a pauta do evento.
“Hoje em dia só olham para os extrativistas da Amazônia, mas também tem muita pressão aqui no entorno de nossas terras. Temos que nos articular para sobreviver e manter o Cerrado em pé”, defendeu. Esse é o lema da Fruta Sã, fábrica de polpas de frutos típicos da região, gerida pelos povos Timbira e pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), e visitada pelos participantes. Vera Olinda, da Comissão Pró-índio do Acre (CPI/AC), frisou que a floresta, para ficar em pé, precisa gerar dinheiro, “e precisamos mostrar como fazer isso rapidamente”.
Mutuá Mehinaku, representante do Xingu, lembrou que há muita potencialidade nas terras indígenas: “Podemos conquistar autonomia financeira com venda de mel orgânico, por exemplo, venda de semente para reflorestamento, ecoturismo na TI. Hoje se fala muito em mercado de carbono, que pode ser outro caminho para buscar recursos, bem como o ICMS Ecológico, a partir do qual as Prefeituras podem investir nos projetos das associações”.
Manutenção da cultura tradicional
Durante o intercâmbio, os povos presentes no encontro puderam vivenciar e aprender um pouco sobre as diferentes culturas existentes no imenso e diverso território brasileiro. Além de escutar as experiências dos demais, eles experimentaram passar um dia e duas noites em uma aldeia Timbira, do povo Canela Ramkokamekra. De acordo com a coordenadora do Programa Timbira do CTI, Maria Elisa Ladeira, esses povos possuem hoje várias pequenas terras espalhadas nos estados do Tocantins e Maranhão, onde antes era um território contínuo.
“O território foi invadido e eles ficaram com pequenas ilhas de terra no meio do Cerrado. Mesmo assim, não há nessas terras ameaça de perda de cultura. Todos falam a língua, independente dos quase 200 anos de contato. A vida ritual, do pátio, do krin (aldeia) é muito forte. É um povo de cantadores, onde todos os conhecimentos sobre o meio ambiente, sobre a vida, são transmitidos pelos cantos. Claro que há divergências entre os povos, mas eles se reconhecem como uma unidade maior”, declarou.
E essa unidade pôde ser percebida pelos demais participantes. Mesmo compreendendo as diferenças entre povos que vivem na imensidão da floresta amazônica e os habitantes da amplidão do Cerrado, puderam ser constatadas muitas semelhanças na luta de cada um. A fala de Vitor Mayuruna, do Vale do Javari, ao fim do encontro, atesta esse fato: “Estou percebendo que nós temos muitas coisas em comum, inclusive os problemas. A cultura deles é forte, mesmo estando muito perto dos brancos”.
Luis Baré, do Rio Negro, afirmou que levará à sua comunidade a lição de que “é possível manter-se unido, praticando e valorizando os costumes”. Makë Bush Matis, também do Javari, não é acostumado a viajar de carro, apenas por via fluvial, mas afirmou que a viagem valeu mais do que todas as oficinas: “A visita à aldeia dos parentes me ensinou bastante. Ver seu modo de organização e resistência é um exemplo que eu levarei ao meu povo”.
Timóteo Guarani resumiu em uma frase sua experiência: “Enquanto dizem por aí que o índio não tem mais cultura, nós pudemos ver que existe cultura viva em muitas aldeias além da nossa, espalhadas por esse grande e chamado ‘território nacional’”.