Intercâmbio da RCA percorre o Parque Indígena do Xingu e seu entorno
Entre os dias 16 e 30 de outubro de 2010, a RCA – Brasil promoveu um intercâmbio coletivo de representantes indígenas e indigenistas das organizações que a integram ao Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso. Este intercâmbio, intitulado, “Intercâmbio da RCA ao Xingu: o contexto regional e as estratégias de gestão territorial nas terras indígenas”, contou com apoio da Rainforest Foundation da Noruega, da Embaixada Real dos Países Baixos no Brasil e do Programa de Meio Ambiente da USAID.
Durante os 14 dias de intercâmbio, esse grupo de representantes visitou instituições e equipamentos sociais na cidade de Canarana, bem como fazendas de diferentes portes nos limites do PIX. Dentro do Parque Indígena, o grupo percorreu os rios Culuene, Xingu e Suia Miçu, passando pelo Alto, Médio, Baixo e Leste Xingu, visitando aldeias dos povos Kuikuro, Yawalapiti, Ikpeng, Kawaiwete e Kisedje, além dos postos indígenas Pavuru, Diauarum e Wawi. O intercâmbio foi coordenado pela Atix e pelo ISA e registrado pelos cinegrafistas Kisedje. Tratou-se do terceiro intercâmbio coletivo sobre a temática da gestão territorial e ambiental das terras indígenas desenvolvido no âmbito das atividades da RCA.
A maioria dos integrantes indígenas do grupo era composta por jovens que saíam de suas áreas de residência e atuação pela primeira vez e não haviam participado dos intercâmbios anteriores, promovidos pela RCA. Outros eram mais velhos, lideranças em suas comunidades. Todos estavam satisfeitos em ver de perto os povos do Xingu, que conheciam pela mídia e vídeos distribuídos em suas aldeias. Queriam trocar idéias e impressões, aprender e contar suas experiências.
As organizações indígenas e indigenistas membros da RCA foram a Canarana compreender as estratégias de articulação de parcerias e as iniciativas de recuperação de áreas degradadas dentro e fora do PIX. Foram conhecer o modo de vida dos povos xinguanos, os meios utilizados para preservar suas culturas, as formas de relacionamento inter-étnicos e as maneiras de apropriação dos costumes e conhecimentos da sociedade não indígena. Tiveram a oportunidade de comparar essas iniciativas com suas próprias experiências e identificar diferenças e semelhanças de contextos e metodologias.
No intercâmbio foi dado destaque para as ações e relações estabelecidas no entorno do PIX pelos povos indígenas que ali habitam, pelo Programa Xingu do Instituto Socioambiental, pela ATIX – Associação Terra Indígena Xingu e por entidades parceiras, para enfrentar os impactos da expansão agropecuária na região.
O intercâmbio contou, também, com apresentações sobre os diferentes contextos, problemas que afetam o bem estar das comunidades indígenas e esforços empreendidos pelas organizações-membro da RCA para minimizá-los. Foi finalizado com um seminário para sistematizar a experiência e definir as linhas gerais que balizam a gestão territorial.
A viagem do intercâmbio – Antes de entrar no PIX, o grupo conheceu a Campanha Y Ikatu Xingu, visitaram a Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente de Canarana e o Viveiro Municipal -uma iniciativa de recuperação de áreas degradadas-, a fazenda de um colonizador e uma escola-abrigo que incluiu a agrofloresta no currículo. E conheceram alguns equipamentos públicos que prestam assistência aos índios, com a Funai e a Casai. Cinco barcos percorreram os rios Culuene, Xingu e Suia Miçu, aportando em aldeias dos povos Kuikuro, Yawalapiti, Ikpeng, Kawaiwete e Kisêdjê, e nos Postos Indígenas Pavuru, Diauarum e Wawi – regiões administrativas do Médio, Baixo e Leste Xingu, onde finalizaram o encontro.
O Parque Indígena Xingu, foi demarcado por empenho de indigenistas que não conseguiram incluir as nascentes da bacia do Xingu na sua área. Fora do PIX, elas se tornaram vulneráveis e ficaram sujeitas ao “abraço da morte” – o desflorestamento. A área desmatada na bacia abrange 36% do total.
Hoje, indígenas e não indígenas habitam a mesma região. Coexistem pessoas e grupos com interesses, condições e conhecimentos diferentes. São pequenos assentamentos, agricultores familiares, médios e grandes proprietários rurais, que se relacionam com os recursos naturais de formas diversas. Apesar das diferenças, todos têm uma necessidade comum – a água.
A Campanha Y Ikatu Xingu – Para minimizar os impactos causados pelo avanço da monocultura da soja, a perda da biodiversidade, a alteração das condições dos rios e comprometimento da qualidade de vida dos povos da floresta, o ISA investigou a realidade do entorno do PIX. Fez diagnóstico da situação fundiária, vem monitorando o desmatamento e o fogo, desenvolveu tecnologia para recuperação de áreas degradadas e mobilizou diversos setores que se envolveram na Campanha Y Ikatu Xingu. A Campanha atua em três frentes: a recuperação florestal, a formação e educação agroflorestal e a articulação de parcerias. Sua perspectiva é mudar a cultura da monocultura e promover a multicultura – a cultura agroflorestal. Hoje são 2 mil hectares de área em processo de restauração, com monitoramento e informações sistematizadas pelo Programa. Envolve 340 parceiros – pequenos, médios e grandes grupos de vários lugares. Têm sido utilizados diferentes métodos para plantio – com mudas, sementes ou misturando sementes em “muvuca” – de forma manual e mecanizada.
A Campanha é sustentada pela confiança nas relações de parceria que foram construídas com o tempo. Se conhecer, experimentar ações conjuntas, entender e aceitar a maneira de cada um agir e conviver tem sido fundamental no processo. Trabalhar junto, perseguindo os mesmos objetivos, com comprometimento, perseverança e permanência, vem trazendo bons resultados.
O modo de vida xinguano – Quando entraram no PIX, os participantes do intercâmbio se surpreenderam com o que encontraram. Aldeias construídas tradicionalmente, culinária típica, rotinas e rituais coletivos preservados. Um convívio equilibrado com recursos tecnológicos avançados como caminhões, caminhonetes, tratores, barcos, motores, geradores, placas solares, parabólicas, televisões, aparelhos de som, computadores e poços artesianos, entre muitos outros.
Conheceram a formação e experiência dos professores indígenas, agentes de saúde, funcionários indígenas da Funai, e gestores das das associações indígenas locais. A eles foi delegada a responsabilidade de atuarem como interlocutores das demandas comunitárias porque dominam a linguagem e os recursos da sociedade não indígena. Lideram processos de defesa e recuperação dos territórios e implementam as estratégias de valorização cultural.
Uma menção recorrente entre os participantes foi a de que “somos diferentes mas somos iguais”, demonstrando os esforços para resgatar e valorizar a própria cultura. Produção de livros e professores indígenas alfabetizando na língua; músicas e vídeos com histórias gravadas; pesquisas escolares sobre suas tradições; culinária indígena na merenda escolar; regras que evitam saídas de jovens para cidades; controle sobre uso de televisão e internet; recuperação de registros históricos; termos de compromisso para produções não indígenas; festivais entre os povos.
Estratégias de sustentabilidade – O grupo que participou do intercâmbio pode verificar algumas estratégias de sustentabilidade do PIX como a meliponicultura Kawaiwete na aldeia Moitará, com 100 caixas em processo de reprodução e a perspectiva de chegar a 500 para comercialização de mel, própolis, pólen e geléia real. A participação de 53 mulheres Ikpeng, como coletoras e beneficiadoras de sementes da Rede de Sementes do Xingu, obtendo renda para suprir suas necessidades básicas e contribuir com o reflorestamento das cabeceiras do Xingu.
Os esforços de recuperação de capoeira desgastada pela sedentarização do povo Kawaiwete na aldeia Capivara, com projeto de multiplicação de sementes de milho. E o investimento dos Kisêdjê na recuperação de área degradada por colonizadores que ocuparam suas terras, por meio de plantio consorciado de pequi com mangaba e a perspectiva de recuperar 16 hectares para criar gado, produzir suprimento alimentar e realizar comercialização futura.
Vigilância e fiscalização do território- O sistema de vigilância e fiscalização do PIX foi abordado por representantes do Alto, Médio, Baixo e Leste Xingu. Trata-se de uma iniciativa coletiva dos povos que conta com apoio da FUNAI, ISA e ATIX. Inicialmente foram montados 11 postos de vigilância nas fronteiras e divisas dos rios, atualmente apenas 5 postos continuam em funcionamento, quase todos no Alto Xingu. A experiência com os postos de vigilância situados nos limites facilitou o aliciamento dos índios, levando alguns indígenas a colaborarem com as ações que deviam fiscalizar. No Baixo e Médio Xingu esses postos foram extintos e as comunidades Kisêdjê, Ikpeng e Yudja, com apoio das associações locais e instituições parceiras, aproveitam as atividades tradicionais de caça, pesca e coleta para também fiscalizar os limites. No Alto Xingu permanece o sistema de vigilância em postos. Realizam expedições de fiscalização por terra, rio e ar (sobrevôo). Fazem abertura de picadas, limpeza e vigilância da linha seca, estabelecem contato com vizinhos para propor manejo e observam o movimento nas fronteiras. Para isso recebem apoio material e institucional além do ISA, da Funai e Ibama, órgãos com poder de impedir o descumprimento da lei.
O serviço de saúde – Os participantes do intercâmbio também foram ao encontro dos jovens agentes de saúde indígena que participavam de um curso de formação promovido pelo Projeto Xingu da UNIFESP, uma iniciativa desenvolvida há 45 anos no PIX. Ela conta com médicos e enfermeiras não indígenas e vem preparando os jovens xinguanos para o exercício da profissão de agentes de saúde, saneamento básico, saúde bucal e administração dos pólos de saúde indígena no PIX. O sistema de saúde no Xingu trabalha a medicina tradicional junto com a medicina não indígena. A proposta é que todos tenham uma visão ampla da saúde, apesar da especialidade de cada trabalho, para não repetir a separação do conhecimento dos não indígenas. A formação se faz por meio de encontros para discussão de doenças comuns ou temas específicos, de estágios em serviço supervisionado e por encontros de equipes.
Desafios da gestão nas terras indígenas – As organizações indígenas e indigenistas da RCA Brasil que atuam em diferentes territórios, a maior parte deles localizados na Amazônia Legal, apresentaram os contextos regionais em que atuam, identificaram os principais desafios e o trabalho desenvolvido para enfrentá-los. A programação do intercâmbio contemplou espaço para os grupos realizarem apresentações e discutirem suas iniciativas.
As discussões foram organizadas por grupos de associações parceiras que atuam nos territórios. Dos oito grupos de associações, cinco atuam em regiões de fronteira, com Peru, Colômbia, Venezuela, Suriname e Guiana Francesa. Dois atuam em regiões de expansão da colonização – o arco do desmatamento – Maranhão, Tocantins, Pará e Mato Grosso. E um já está completamente envolvido pelas cidades do litoral brasileiro.
Os problemas mais comuns são a construção de estradas, hidrelétricas e outras obras de infra-estrutura que facilitam o desmatamento e o surgimento de cidades, invasões de pequenos e grandes agricultores e de madeireiros, caçadores e pescadores ilegais. Para alguns, a caça já está escassa. A exploração mineral vem acarretando graves danos nos territórios indígenas. Pequenos e grandes grupos de garimpeiros se instalaram em TIs para retirar minério. Provocaram contaminação dos rios por mercúrio, acarretando diversas doenças às populações indígenas. Algumas bacias encontram-se comprometidas porque suas nascentes estão fora das TIs e o avanço das monoculturas de soja e eucalipto é preocupante. O relacionamento com ribeirinhos e a cidade por vezes não é amistoso, nem mesmo com os responsáveis pelas unidades de conservação e de proteção. Os indígenas são impedidos de entrar e caçar nessas áreas que sempre fizeram parte do seu território.
O fortalecimento interno das comunidades indígenas tem sido promovido pela maioria das organizações presentes. Utilizam pesquisas para subsidiar projetos, mapeamentos de recursos e eventos históricos, envolvendo a comunidade na formulação de diagnósticos e estratégias de superação de problemas. Formulam planos de vida, planos de desenvolvimento sustentável e outros planos de gestão dos territórios para programar ações integradas que garantam a qualidade de vida futura dos povos. Apóiam as associações, as diferentes formas de expressão e manifestação cultural e investem na formação de gestores socioambientais e territoriais que liderem processos e articulações com os diferentes setores da sociedade em geral.
A fiscalização das terras indígenas é realizada pela maioria dos grupos como meio de promover expulsões e apreensões. Alguns fazem limpeza e reaviventação dos limites, outros realizam expedições coletivas para caçar, pescar, coletar. Aproveitam as atividades tradicionais para reconhecer o entorno, observar sua ocupação e o processo de expansão da monocultura. A maioria tem procurado se fortalecer estabelecendo vínculos com parceiros. Por meio de encontros, seminários e diálogos, procuram discutir as questões que afetam a todos.
Os pilares da gestão das terras indígenas e de seu entorno – Um seminário de sistematização foi planejado para o final do encontro com a perspectiva de organizar as impressões sobre o contexto xinguano, as estratégias e abordagens comuns aos grupos de trabalho e contribuir com a formulação das linhas gerais para gestão do entorno das terras indígenas. Para tanto, os organizadores do intercâmbio lançaram mão de debate em grupo, estudo de caso e avaliação final.
Os pilares da gestão territorial no Xingu formulados pelo grupo foram: a organização social e política e a capacidade de diálogo; a identidade cultural e a manutenção da força espiritual; a mobilização dos jovens; a estrutura de fiscalização; o reflorestamento e a segurança alimentar; o relacionamento com o governo e decorrentes conquistas. As estratégias propostas para gestão no entorno das TIs foram: fortalecimento interno dos povos; ações de formação e capacitação indígenas; vigilância e diálogo nas fronteiras; e organização para influir nas políticas públicas.
A RCA Brasil pretende sistematizar os resultados desse intercâmbio e de outros dois intercâmbios coletivos sobre gestão ambiental e territorial indígena realizados em anos anteriores no Rio Negro/AM e no Acre, como forma de contribuir para as políticas públicas de gestão territorial indígena no país.